GERA A ESCOLA EXPECTATIVAS QUE ELA NÃO PODE CUMPRIR?
Eduardo O C Chaves
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I. Esclarecimentos Conceituais Preliminares
II. A Expectativa e a Realidade
III. A Criança e a Aprendizagem
IV. Algumas Considerações sobre o Problema
VI. Algumas Considerações sobre o Papel da Tecnologia
I.
Esclarecimentos Conceituais Preliminares
Neste trabalho faço uma distinção bastante precisa
entre educação, aprendizagem, ensino e escola – conceitos que muitos tendem a
usar de forma não muito discriminada. Nesta seção vou procurar demarcar, de
forma concisa, o sentido desses conceitos para facilitar a discussão dos temas
apresentados nas demais seções.
Educação é de longe o conceito mais fundamental. Em
seu sentido mais amplo, educação é o processo mediante o qual as pessoas obtêm
a capacitação necessária para viver suas vidas, tanto no plano individual
(privado) como no social (público), de forma autônoma, competente e
responsável. [1]
O sujeito e o objeto da ação representada pelo verbo
“educar” são sempre uma pessoa: alguém educa alguém – nada impedindo, porém,
que, até certo ponto, alguém se eduque a si mesmo. [2]
Dando por pressuposto que aquilo que o ser humano vai
se tornar, ao longo de sua educação, não está inexoravelmente programado
geneticamente, é forçoso concluir que a educação está necessariamente ligada à
aprendizagem – e que, portanto, o conceito de educação tem uma conexão
necessária com o conceito de aprendizagem. [3]
Apesar da conexão necessária entre educação e
aprendizagem, é preciso reconhecer que nem todo aprendizado faz necessariamente
parte da educação de uma pessoa. Para que um determinado aprendizado faça parte
de sua educação, é necessário que ele seja objetivamente valorizado no contexto
social em que a pessoa vive – ou seja, que ele seja objetivamente visto como
contribuindo para capacitar a pessoa para viver sua vida privada e pública,
como, portanto, indivíduo e cidadão, de forma autônoma, competente e
responsável. [4]
Os aprendizados que fazem parte da educação de uma
pessoa precisam, também, e necessariamente, incluir um certo nível de
compreensão e entendimento dos processos envolvidos. Um autômato, mesmo que
tenha comportamento exemplar, não é educado – é meramente programado. Isso quer
dizer que aprendizados em que uma pessoa apenas adquire, de forma mais ou menos
automatizada, determinados conhecimentos ou mesmo determinadas competências e habilidades,
sem que dela se exija compreensão e entendimento dos processos envolvidos,
estão mais próximos de programação, e, portanto, mais distantes da educação, do
que aprendizados que os exigem. [5]
Uma outra característica do conceito de educação, já
mencionada de passagem, é que alguém pode tanto ser educado como educar-se a si
mesmo [6] – da mesma forma que
alguém pode aprender alguma coisa em decorrência de um esforço consciente e
intencional de terceiros ou, alternativamente, em grande parte por si só. [7]
O conceito de educação não está conceitualmente ligado ao conceito de ensino – embora a aprendizagem envolvida na educação possa ocorrer através do ensino. Ensino é um processo consciente, formal, e deliberado de instrução que tem por objetivo produzir determinado tipo de aprendizagem. Mas o ensino é apenas uma das formas de promover a aprendizagem – e, em muitos contextos, nem de longe a mais eficaz e eficiente. É notório o fato de que aprendemos grande (talvez a maior) parte das coisas sem que alguém consciente, formal e deliberadamente nô-las ensine. Por isso, pode muito bem haver educação sem que haja ensino – em contextos, por exemplo, em que há auto-aprendizagem ou em que há aprendizagem colaborativa em que ninguém exerce, necessariamente, a função de ensinar.
Por fim, a escola tem sido uma das instituições em
que a educação ocorre – especialmente naquela modalidade em que a educação tem
sido dependente do ensino. Mas a educação pode ocorrer através de vários outros
canais (além da escola) e (dentro ou fora da escola) por vários outros meios
(além do ensino). Nossa própria Lei de Diretrizes e Bases reconhece que a
educação pode ocorrer no lar, nos centros comunitários, nos locais de trabalho,
nas igrejas, nos sindicatos, através dos meios de comunicação de massa – e,
naturalmente, ou pelo menos assim se espera, na escola (Vide Lei nº 9394/96,
Artigo 1º) [8]. O primeiro
parágrafo desse artigo da Lei esclarece, porém, que “esta Lei disciplina a
educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em
instituições próprias”.
Ao falar, portanto, em educação escolar, no que
segue, terei em mente exclusivamente a educação que ocorre através da escola
(no sentido estrito do termo), não outros tipos de educação (ainda que ocorram,
por exemplo, através do ensino, mas em contextos não-escolares). Ao falar em
auto-aprendizagem e aprendizagem colaborativa, terei em mente a aprendizagem
(e, eventualmente, a educação) que ocorre sem que haja ensino (ainda que ocorra
dentro da escola). Procurarei deixar claro, em cada contexto, a que estou me
referindo.
II. A
Expectativa e a Realidade
Minha tese principal neste artigo é que os usuários
da escola pública brasileira (alunos e seus pais) estão sendo vítimas de um
engodo – mesmo que se conceda (ad
argumentandum) que as intenções dos responsáveis por ela sejam as melhores [9].
1. A Expectativa Gerada
Os meios de comunicação de massa e a literatura,
especializada ou voltada para o público leigo, alardeiam que é chegada a hora
da educação.
Na sociedade agrícola e na sociedade industrial ainda
era possível, afirmam, que boa parte das pessoas pudesse viver relativamente
bem exercendo funções que envolviam quase que exclusivamente sua força física
ou, quando iam além, eram repetitivas e não exigiam um esforço muito grande de
aprendizagem.
Na sociedade da informação, porém, afirmam, o
conhecimento é fator essencial de produção: na verdade o conhecimento passou a
ser o principal meio de gerar riquezas e produzir o desenvolvimento econômico e
social.
Por essa e outras razões, nunca se esperou tanto da
educação.
A própria legislação que rege a educação no país
apregoa que a educação é, para o indivíduo, a maneira mais segura de alcançar
realização pessoal, de se preparar para o exercício da cidadania e de se
capacitar para a atuação profissional, e, para a sociedade, a forma mais
confiável de superar o sub-desenvolvimento cultural, social e econômico de modo
a se tornar mais rica em alternativas, solidária e justa (vide, por exemplo o
Artigo 2º da LDB).
Gera-se, com essas essas afirmações, a expectativa de
que tudo isso vá ser alcançado através da educação hoje ministrada em nossas
escolas públicas e que, portanto, para o indivíduo, a chave para a realização
pessoal, a atuação eficaz no seio da sociedade e o exercício bem sucedido de
uma profissão está em freqüentar a escola – diversos estudos sendo produzidos
para mostrar que a alegada diferença de qualidade entre a escola pública e a
particular não é tão grande quanto se poderia imaginar e que, em alguns casos,
alunos egressos de escolas públicas tiveram desempenho superior aos das escolas
particulares em provas oficiais realizadas pelo governo.
Para ajudar a difundir essa expectativa e para,
segundo se afirma, permitir que a sociedade brasileira (tanto as crianças e
suas famílias como a população em geral) se beneficie da educação, o governo
faz alarde do fato de que, nos últimos anos, tem tomado as seguintes
providências:
a) Tornou a educação pública – da pré-escola à pós-graduação –
totalmente gratuita e, na faixa etária de 7 a 14 anos, obrigatória;
b) Construiu escolas públicas de educação básica em número quase que
suficiente para acolher todos os que nelas desejam estudar;
c) Incentiva, de várias maneiras, os pais a colocarem e a manterem seus
filhos em idade regulamentar na escola de ensino fundamental e médio – os
incentivos sendo tanto negativos (como a punição para os pais cujos filhos não
estejam na escola) como positivos (na forma, por exemplo, de concessão de
bolsas em dinheiro para as famílias que colocam e mantêm seus filhos na
escola);
d) Criou ou apoia programas de recuperação para os alunos que foram
reprovados e de aceleração para os alunos que, por causa de múltiplas
reprovações, ficaram cronicamente defasados em relação a outros da mesma idade;
e) Criou ou apoia programas de introdução de tecnologia na escola, com o
objetivo de fazer com que a escola pública não fique defasada, em relação à
escola particular, no que diz respeito à infraestrutura que se presume
necessária para o ensino e a aprendizagem.
2. A Triste Realidade
No entanto, essas providências não conseguem esconder
o fato, admitido recentemente pelo próprio Ministro num minuto de candor no
exterior, que a educação que é ministrada na maioria de nossas escolas públicas
de educação básica ainda é de péssima qualidade.
Além disso, embora o governo e seus aliados na mídia
tenham procurado rapidamente abafar a notícia, causa espanto que, na rede
pública do estado mais desenvolvido da nação, grande número de alunos cheguem
analfabetos até a quarta, quinta ou mesmo sexta série.
3. A Causa do Problema
A má qualidade da escola pública não se deve apenas
ao fato de que o seu professorado é mal preparado e mal remunerado, que as
instalações são pobres, que faltam livros e outros recursos didáticos. Embora
todas essas constatações sejam verdadeiras, o problema básico e fundamental se
localiza em uma dimensão diferente.
A qualidade da escola pública é ruim especialmente
porque as escolas operam com uma visão totalmente equivocada e anacrônica dos
objetivos da educação escolar e, conseqüentemente, por melhores que sejam os
meios que adotem, não lograriam bons resultados, ainda que esses meios fossem
competentemente utilizados e gerenciados.
Se isso é verdade, os programas voltados para trazer
as crianças e jovens para dentro da escola, para mantê-los ali, e para
recuperar aqueles que ficaram defasados em relação à sua faixa etária, embora
demonstrem sucesso em acelerar o aprendizado desses alunos, não garantem que o
aprendizado que estão tendo seja significativo em relação às suas necessidades
e aos seus interesses e em termos de seu aproveitamento na vivência da cidadania
e no exercício profissional.
A tecnologia introduzida na escola (tanto televisão e
vídeo como computadores) é, em regra, orientada para reforçar e tornar mais
eficiente o modelo de educação reinante, não levando em conta o fato de que, se
a direção em que se caminha é errada, caminhar de forma mais eficiente
significa apenas chegar mais rapidamente a um destino indesejado (que, às
vezes, é desastroso).
II. A
Natureza da Questão
A educação pública, hoje, e por um bom tempo, e
apesar de alguns esforços em contrário, continua orientada para a absorção, por
parte dos alunos, de conteúdos informacionais (fatos, conceitos, procedimentos
e princípios), que, além de serem voltados para áreas específicas e, portanto,
de serem concebidos de forma compartimentada e estanque (as disciplinas), se
tornam obsoletos com extrema rapidez.
Conseqüentemente, os currículos utilizados nesse tipo
de educação são, por sua vez, centrados em disciplinas, que são o repositório
dos conteúdos informacionais mencionados, e que, em geral, são apresentadas aos
alunos de maneira seriada (segundo a idade), e sempre de forma abstrata
(“descontextualizada”), totalmente desvinculada dos problemas fundamentais que
um dia levaram o ser humano a se interessar por esse tipo de questão.
Assim, o aprendizado dos alunos é caracterizado como
mera absorção dos conteúdos informacionais das várias disciplinas que compõem o
currículo, esperando-se que essa aprendizagem seja o resultado mais ou menos
automático de um ensino que, o mais das vezes, não vai além da mera
apresentação de parte dos conteúdos a serem absorvidos – a outra parte ficando
por conta dos livros didáticos, cuja leitura também se espera que vá redundar
em aprendizagem (i.e., na absorção dos conteúdos informacionais que foram
lidos).
Na sociedade da informação em que hoje vivemos,
valoriza-se, entretanto, no indivíduo, e corretamente, não a quantidade de
informações que ele possui, mas, sim, sua competência na resolução de
problemas, sua visão de longo prazo, sua criatividade, sua adaptabilidade a
mudanças, sua capacidade de tomar decisões, sua disposição de assumir riscos,
sua facilidade para trabalhar em equipe, administrar pressões, e gerenciar
tensões e conflitos, sua capacidade de automotivação e de liderança, sua
sensibilidade no trato de questões inter-pessoais, etc.
Eis, a título meramente ilustrativo, o que
recentemente afirmou Maria Betânia Ferreira, Pedagoga e Assessora da Diretoria
de uma grande empresa paulista, no sumário de sua palestra "Perfil
Profissional e Formação Escolar" apresentada no Congresso Educador 2000:
“As empresas precisam, hoje, de profissionais que tenham perfil
compatível com padrões elevados e refinados de convivência, cooperação,
iniciativa, criatividade, inovação, sensibilidade, comunicação, visão holística.
Faculdades e consultorias dedicam-se ao desenvolvimento desse perfil. Mas tais
esforços, com uma população já adulta, nem sempre trazem resultados
consistentes. Muitas vezes acabam por criar ‘fachadas’ de profissionais
modernos, com atitudes estereotipadas determinadas muito menos por convicções
do que por necessidade de corresponder a uma expectativa de imagem. Por isso,
as escolas precisam levar a sério a tarefa de desenvolver um currículo mais
abrangente, que, desde as primeiras séries, esteja mais voltado para o
aprimoramento de qualidades e habilidades tais como planejar, coordenar, tomar
decisões, comunicar, avaliar, e menos centrado na transmissão de informações.” [10]
Resta evidente que a aprendizagem que consiste na
mera absorção de conteúdos informacionais, que é a aprendizagem promovida, de
maneira quase exclusiva, pela escola (em especial a pública), não leva, de
forma alguma, na sociedade da informação, à realização pessoal e ao progresso
material, nem contribui para que a sociedade encontre as melhores formas de
superar o sub-desenvolvimento cultural, social e econômico de modo a se tornar
mais rica em alternativas, solidária e justa.
Pretender o contrário é perpetrar sobre os alunos da
escola pública, seus pais e a sociedade em geral tremendo engodo.
A única educação que tem condições de satisfazer as
expectativas que a sociedade tem em relação à educação é a que leva ao o
desenvolvimento, pelos alunos, de competências e habilidades que possam lhes
servir em qualquer contexto e ter valor permanente – especialmente a habilidade
de aprender a aprender, para que possam aprender sempre – cujo currículo é
centrado na análise e na tentativa de solucionar problemas concretos,
relacionados com a vida diária dos alunos. Ou seja, uma educação orientada para
o desenvolvimento de competências, baseada em um currículo centrado em
problemas.
O governo pode argumentar que é isso que está
promovendo na escola pública quando propõe (ou determina) a utilização dos
Parâmetros Curriculares Nacionais. Com esses parâmetros o próprio governo
confessa a existência do engodo mencionado e reconhece a necessidade de
drasticamente modificar a visão e os métodos pedagógicos da escola pública,
mostrando a necessidade de se dar ênfase ao desenvolvimento de competências e
habilidades (em detrimento do conteúdo) e propondo, como forma suplementar de
organização curricular, a introdução de temas transversais (em detrimento das
disciplinas tradicionais).
Contudo, o governo está fazendo muito pouco, muito
tarde, de forma muito gradual e com hesitações, combinação de fatos que
certamente garantirá que mudanças, se houver, aconteçam de forma a não alterar
drasticamente o cenário.
Os novos exames de âmbito nacional criados pelo
governo (ENEM, ESEB, "Provão", etc.) preservam, em regra, a ênfase
tradicional na mera absorção de conteúdos, a despeito do fato de que o governo
pretende o contrário. Que a prática do governo não se coaduna com seu discurso
ficou evidente, recentemente, em episódio em que foram feitas aos alunos de um
dos exames nacionais oito áridas perguntas de múltipla escolha sobre um lindo
texto (levemente erótico) que o próprio autor do texto, o jornalista e escritor
Mário Prata, não conseguiu responder corretamente (conforme o gabarito).
Entre as perguntas havia:
A expressão “esparramados em seios esplêndidos” é:
a)
uma
paráfrase,
b)
uma
metáfase,
c)
uma
paródia,
d)
uma
amplificação
e)
o
resumo de um texto bem conhecido pelo cidadão brasileiro?
Ou:
Em qual das cinco expressões abaixo, encontramos exemplo de
intertextualidade:
a)
"...
principalmente o feminino balé de braços, de loiras e altitudes mil";
b)
"Não,
leite Moça foi feito para flanar esparramado em seios esplêndidos, chacoalhando
no ar, jornadando até as estrelas";
c)
"Aquelas
meninas-moças, todas voando pela quadra, já fazem parte da latinha";
d)
"Embaixo,
está escrito: indústria brasileira";
e)
"...
que saem de dentro da lata como que convocadas pelos gênios das lâmpadas que
iluminam."
O autor do texto só poderia mesmo reclamar do
Ministro e lhe dar uma lição de sensibilidade e de educação ao dizer:
“Será que não teria sido melhor publicar a crônica (como foi feito) e
pedir para a garotada escrever o que quisesse, o que achasse, o que bem
entendesse do que eu entendi? Deixar o jovem manifestar a sua opinião, fazer a
garotada escrever no lugar de ficar ticando opções fáticas?. . . . Já disse lá
atrás, ministro e organizadores da prova, que sinto-me [sic] sinceramente envaidecido com a escolha de um texto meu. Mas
jamais poderia imaginar que, ao escrever uma crônica pensando naquelas coxas
todas, naqueles seios esparramados pelas quadras, ao escrever um texto de olho
na Karin, ao digitar uma crônica preocupado com o desemprego da minha namorada
(que fazia parte da equipe) fosse dar tanta dor de cabeça para dezenas de
milhares de jovens que querem apenas uma profissão digna para enobrecer este
nosso País tão mal-educado”. [11]
Os temas transversais, como bem indica a expressão,
devem ser adotados como um recurso complementar à organização convencional do
currículo (matricial por disciplina e série). Essa é uma mudança muito tímida:
o que precisaria ser feito é alterar totalmente a atual estrutura curricular,
desenvolvendo uma nova com base em problemas, a serem resolvidos mediante projetos,
esquecendo-se de vez as disciplinas. Mas isto é difícil e complicado. Então se
faz de conta que está se fazendo alguma coisa importante e se obriga o
professor de matemática e de educação física a, de vez em quando, dar uma aula
sobre violência, drogas, promiscuidade sexual, meio ambiente, etc. – ou a
dedicar algum espaço, dentro da aula convencional, para a discussão desses
“temas transversais”. Nada vai acontecer em função disso – porque se preserva
especialmente a estrutura curricular que precisaria ser substituída de vez.
Assim, é forçoso concluir que a escola (em especial a
pública) precisa encontrar novas formas de ensinar e promover uma aprendizagem
drasticamente diferente, se ela pretende corresponder às expectativas que se
fazem acerca da educação escolar. Não se trata apenas de aperfeiçoar as atuais
formas de ensino e aprendizagem, torná-las mais eficientes e, ao mesmo tempo,
como se fosse possível, mais agradáveis. O que padece de crítica é o próprio
modelo, ou paradigma de aprendizagem, e, conseqüentemente de ensino, que hoje
nela impera. Conseqüentemente, é preciso, de certo modo, “virar as coisas de
ponta cabeça”, recomeçar do zero.
É interessante notar que o modelo ou paradigma que
hoje é hegemônico na escola pública não possui fundamentação teórica ou
justificativa séria. Quando as coisas são colocadas nos devidos termos, poucos
são os que explicitamente endossam a tese de que educar é ensinar às crianças
os fatos, os conceitos e, se for o caso, os procedimentos e princípios
envolvidos nas várias disciplinas: estudos sociais ou, especificamente,
história, geografia; ciências ou, especificamente, biologia, física, química;
matemática; filosofia; língua materna; uma língua estrangeira. Esse modelo ou
paradigma foi, sem respaldo teórico, se infiltrando na escola e acabou
alcançando condição de hegemonia, apenas porque é mais fácil de ser colocado em
prática do que as alternativas. Na realidade, ele contradiz virtualmente tudo o
que sabemos sobre o que é que motiva as crianças a aprender e como elas de fato
aprendem – como em seguida se verá.
III. A
Criança e a Aprendizagem
Não se pode ignorar que antes de entrar na escola a
criança aprende uma quantidade enorme de coisas:
·
aprende
a diferenciar a suas impressões sensoriais e a identificar objetos e pessoas;
·
aprende
a pegar e a manipular objetos; aprende a ficar de pé e eventualmente a andar;
·
aprende
a gostar de determinadas coisas e a não gostar de outras, desenvolvendo nítidas
preferências;
·
aprende
a responder adequadamente ao contato de terceiros (conhecidos ou estranhos);
·
aprende
a identificar sons, em especialmente os da fala humana; aprende primeiro a
expressar o que deseja através de gestos e sinais, depois aprende a imitar
gestos e sons e, eventualmente, aprende a falar;
·
aprende
a se alimentar sozinha; aprende a controlar sua bexiga e seus intestinos;
·
aprende
que não deve fazer determinadas coisas; aprende a demonstrar carinho e a
agredir os outros, quando contrariada;
·
aprende
eventualmente a identificar símbolos, desenhos, sons e mesmo palavras escritas
com seus referentes
e assim por diante.
Algumas crianças aprendem até mesmo a ler e a
escrever virtualmente sozinhas. Outras crianças aprendem a se locomover, sem se
perder, em espaços relativamente complexos – como um sítio ou mesmo as ruas de
uma grande cidade.
·
Registre-se,
porque de fundamental importância, que nenhum desses aprendizados envolve a
absorção pura e simples de informação – em todos eles o essencial é o
desenvolvimento de competências e habilidades – sensório-cognitivas,
psico-motoras, afetivo-emocionais e interpessoais (sociais). Registre-se ainda
que em nenhum desses casos há um processo de ensino formal e
institucionalizado: a criança aprende observando, imitando, e respondendo a
intermitentes intervenções (estimulações ou provocações, no bom sentido)
daqueles que compartilham o seu mundo.
·
Além
do mais, aprender todas essas coisas dá grande prazer às crianças – sua
curiosidade inata as torna automotivadas e em nenhum momento elas parecem
apáticas e o aprendizado lhes parece doloroso ou entediante. Aprender é parte
de sua vida – na verdade, a parte principal da sua vida. Brincar, para elas, é
aprender, e aprender é brincar.
·
Por
fim, ajudar as crianças a aprender essas coisas todas é um processo
relativamente simples – até as pessoas mais simples, sem educação geral e sem
formação especializada na área de pedagogia da pré-escola, conseguem ajudar a
criança nesse processo alegre de aprendizado.
Se, ao entrar na escola, o aprendizado subitamente se
torna aborrecido e mesmo sofrido para as crianças, isto é muito mais por falha
da escola do que das próprias crianças – pois nada fundamental se altera nelas,
além do fato de que seu aprendizado agora deve se processar principalmente no
ambiente organizado e estruturado da escola, que altera drasticamente a
natureza do processo de aprendizagem.
As alterações fundamentais são basicamente as
seguintes:
1.
Na
escola o aprender desvincula-se do brincar e se torna uma obrigação. Falando
mais tecnicamente, na escola corta-se o vínculo anteriormente existente entre
processos cognitivos e processos vitais – entre aprendizagem e vida, entre
aprendizagem e experiência.
2.
O
objeto do aprendizado escolar deixa de ser o desenvolvimento de competências e
habilidades nos alunos para se tornar a absorção, por eles, de grandes
quantidades de informação: fatos, conceitos, procedimentos, princípios – que,
com honrosas exceções, é uma tarefa extremamente maçante para qualquer um.
3.
O
aprender deixa de ser, conseqüentemente, algo ativo, que a criança faz, para ir
se tornando, mais e mais, um sub-produto esperado da ação do professor – algo
que se espera que o professor faça, através do ensino. Espera-se que, através
do ensino, o professor gere o aprendizado na criança. Desta forma, o
aprendizado não é algo que a criança faz, mas algo que lhe é feito – algo que
ela “sofre” (em mais de um sentido).
4.
A
escola, além de, num procedimento totalmente artificioso, criar horas e locais
específicos para a criança “aprender” determinadas coisas, gera na criança a
idéia, extremamente nociva, de que aprender não é um processo natural,
agradável e contínuo, que começa com o nascimento (ou antes) e termina apenas
com a morte, mas, sim, algo artificial, difícil e doloroso, que, tendo começado
quando a criança entra na escola, termina quando ela, com enorme alívio, deixa
a escola, sendo o seu aprendizado (visto como resultado e não como processo)
certificado através de um diploma.
5.
Estipula-se
que todos devam aprender as mesmas coisas, pelos mesmos métodos, nos mesmos
ritmos e nos mesmos momentos – independentemente de seus interesses, de suas
aptidões, de seu estilo cognitivo, de seu estado de espírito, etc.
6.
A
escola pressupõe que as pessoas não são intrinsecamente inclinadas a aprender e
que, portanto, precisam ser obrigadas a fazê-lo, para tanto construindo o
processo de aprendizagem em cima de mecanismos artificiais de recompensas e
punições que ajam como motivadores externos.
7.
O
modelo ou paradigma é ainda mais malévolo, pois a atenção da escola
concentra-se nos eventuais “pontos fracos” das crianças, tendo em vista o
objetivo (que a escola compartilha com a linha de montagem) de que todas as
crianças estejam “padronizadas” (e, portanto, sejam intercambiáveis) ao final
do processo. Assim, se uma criança gosta de escrever e sabe escrever bem, mas
não gosta de matemática ou desenho, nem é muito competente nessas áreas, a
escola a obriga a concentrar a atenção nas coisas que ela não gosta de fazer e
a deixar de lado os seus interesses.
Esse modelo ou paradigma de ensino e aprendizado mata
a curiosidade natural das crianças e, em alguns casos, as marca de tal forma
que elas ficam traumatizadas. (Traumas com matemática e com língua materna são
comuns).
IV. Algumas
Considerações sobre o Problema
Como se afirmou atrás, esse modelo ou paradigma de
educação, que hoje é hegemônico, não possui fundamentação teórica ou
justificativa séria – pelo contrário, ele contradiz virtualmente tudo o que
sabemos sobre o que é que motiva as crianças a aprender e como elas de fato
aprendem. Esse modelo ou paradigma foi se infiltrando na escola, e acabou
alcançando condição de hegemonia, apenas porque é mais fácil de ser colocado em
prática do que as alternativas, em contextos de educação de massa. Ele é
combatido, no plano teórico, por quase todos os autores e mesmo professores que
o praticam ativamente se negam, no plano teórico, a endossá-lo, preferindo
professar aceitação de modelos e paradigmas que contradizem a sua prática
efetiva (que é realizada de acordo com o modelo ou paradigma que acabamos de
delinear).
Às vezes é preciso que pessoas de fora da área da
educação nos chamem a atenção para esse fato. Eis o que diz Peter Drucker, em As
Novas Realidades:
“Instruir — mesmo no alto nível exigido por uma sociedade de
trabalhadores intelectuais — é uma tarefa mais fácil do que transmitir aos
estudantes o desejo de continuarem aprendendo e as habilidades e conhecimentos
que necessitarão para fazê-lo. Até hoje nenhum sistema escolar se dispôs a
enfrentar essa tarefa. . . . No entanto, nós sabemos como as pessoas aprendem a
aprender: e já o sabemos há dois mil anos. O primeiro e mais sábio autor sobre
a educação das crianças, o grande biógrafo e historiador grego Plutarco,
explicou isso claramente em seu belo livrinho Paidea (“Formação das Crianças”),
no primeiro século da era cristã. Basta tornar os alunos realizadores, basta
concentr[ar] nos seus pontos positivos e nos seus talentos a fim de que eles
possam se sobressair em tudo o que souberem fazer bem. Qualquer mestre de
jovens artistas — músicos, atores, pintores — sabe disso; qualquer instrutor de
jovens atletas também. Mas as escolas não o sabem e, ao invés, concentram-se
nos pontos fracos e nas deficiências dos alunos. Quando um professor convoca os
pais de um garoto de dez anos, ele geralmente começa dizendo: ‘O seu Joãozinho
precisa estudar mais a tabuada; ele está muito atrasado’. Raramente o professor
dirá: ‘A sua Maria deveria dedicar-se mais à redação para poder fazer melhor o
que ela já faz bem’. Os professores — do primário à universidade — tendem a se
concentrar mais nas deficiências dos alunos, e por bons motivos: ninguém pode
prever o que uma criança de dez anos estará fazendo dez ou quinze anos mais
tarde. Nessa fase não é possível sequer eliminar muitas opções. A escola tem
que imbuir em seus alunos as habilidades básicas [de] que irão precisar em
qualquer caminho que porventura escolham, pois em qualquer um eles terão que
saber atuar. Mas um bom desempenho não pode fundamentar-se em deficiências, nem
mesmo em deficiências corrigidas: o bom desempenho nasce somente dos pontos
positivos, das qualidades, dos talentos. E esses as escolas tradicionalmente
ignoram, ou consideram mais ou menos irrelevantes. Aquilo que um aluno tem de
bom não é causa de problemas — e todas as escolas estão polarizadas nos
problemas. Na sociedade instruída, os professores terão que aprender a dizer:
‘Quero ver o seu Joãozinho, ou a sua Maria, escrevendo muito mais; seu filho
tem talento, e esse talento precisa ser desenvolvido e aperfeiçoado.’ . . . As
novas tecnologias do ensino tornarão isso possível, além de praticamente
forçarem escolas e professores a se concentrar nos pontos fortes e nos talentos
dos alunos” [12].
Freqüentemente nós, educadores, que de certo modo
vivemos dentro da escola, perdemos o ângulo de visão e o senso crítico e
acabamos por crer que o que se exige são apenas pequenos ajustes aqui e ali,
melhores livros didáticos, aparelhos de televisão e video-cassete em cada sala
de aula e um laboratório de informática. Mas não, o modelo ou paradigma é que
está errado. John Keating, em A Sociedade dos Poetas Mortos,
conseguiu romper com o modelo ou paradigma mandando os alunos rasgar seus
livros didáticos, sair da sala de aula e ir para fora da escola – para aprender
poesia – sem usar tecnologia alguma...
Quem está de fora, porém, não deixa de ver o perigo
que o modelo ou paradigma de educação que se tornou hegemônico na escola
representa para o desenvolvimento das crianças. Samuel Butler, o grande autor
de Erewhon,
no século XIX, disse:
“Às vezes fico a imaginar porque é que que a escola não causa mais danos
aos jovens, e como é que eles, em geral, acabam crescendo sensatos e bons,
apesar das tentativas deliberadas da escola de distorcer e mesmo de impedir seu
crescimento. Alguns, naturalmente, não conseguem escapar dos efeitos danosos da
escola e sofrem até o fim de suas vidas por isso. Outros, porém, poucos danos
parecem sofrer, e alguns até se safam sem dano algum. A resposta parece ser que
o instinto natural dos jovens, na maior parte dos casos, se rebela de forma tão
absoluta contra o que a escola tenta fazer com eles que, não importa o que
tentem os professores, não conseguem que seus alunos os tomem realmente a
sério”. [13]
Karl Popper, que cita a passagem de Butler em seu
livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos, acrescenta:
“Tem se dito, e com muita verdade, que Platão foi o inventor de nossas
escolas e universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista
da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela
decência, de sua originalidade e de sua saúde mental, do que o fato de que essa
devastadora instituição não tenha sido capaz de arruiná-la totalmente”. [14]
Comenta, com grande poder de percepção, Marshall
McLuhan:
“Platão, em todo seu esforço de imaginar uma escola ideal, deixou de
notar que Atenas era uma melhor escola do que qualquer universidade que ele
conseguisse inventar”. [15]
Foi Platão que inventou – mas foi a sociedade
industrial que aperfeiçoou. Eis o que diz Alvin Toffler:
"Educação de massa foi a máquina engenhosa construída pela
sociedade industrial para produzir o tipo de adulto de que ela necessita, . . .
um sistema que, em sua própria estrutura, simulava essa sociedade. O sistema
não emergiu instantaneamente. Mesmo hoje ele ainda retém elementos da sociedade
pré-industrial. Contudo, a idéia de agrupar grandes massas de estudantes
(matéria-prima) para serem processados por professores (trabalhadores) em uma
escola centralizada (fábrica) foi uma solução de gênio industrial. Toda a
hierarquia administrativa da organização, à medida que foi aparecendo, seguia o
modelo da burocracia industrial. A própria organização do conhecimento em
disciplinas permanentes foi fundada em pressupostos industriais. As crianças
marchavam de lugar em lugar e se assentavam em locais preestabelecidos. O sinal
tocava para anunciar a hora de mudanças. A vida interna da escola assim se
tornou um espelho antecipatório da sociedade industrial, uma introdução
perfeita a ela. As características mais criticadas da educação hoje — sua
regimentação, sua falta de individualidade, os sistemas rígidos de disposição
física da sala de aula, de agrupamento das crianças por classes e séries, de
notas, o papel autoritário do professor — são exatamente as características que
fizeram da escola pública de massa um instrumento tão efetivo de adaptação à
sociedade industrial." [16]
Quanto se propõe que a educação seja orientada para
competências, o que se pretende é que o aprendizado escolar se organize não
mais em função de conteúdos informacionais a serem transmitidos, mas, sim, em
função de competências e habilidades que as crianças devem desenvolver em
continuidade com as competências e habilidades que vinham desenvolvendo na fase
pré-escolar. Peter Drucker, no livro já mencionado, aponta a direção:
“Nós sabemos que diferentes pessoas aprendem de maneira diferente;
sabemos que, na realidade, o [estilo de] aprendizado é tão pessoal quanto uma
impressão digital. Não há duas pessoas que aprendam da mesma maneira. Cada um
tem uma velocidade diferente, um ritmo diferente, um grau de atenção diferente.
Se lhe for imposto um ritmo, uma velocidade, ou um grau de atenção estranho,
haverá pouco ou nenhum aprendizado. Haverá apenas cansaço e resistência. Nós
sabemos . . . que pessoas diferentes aprendem matérias diferentes de maneira
diferente. A maioria de nós aprendeu a tabuada através da repetição e dos
exercícios. Mas os matemáticos não ‘aprendem’ a tabuada: eles a ‘captam’, por
assim dizer. Da mesma forma, os músicos não aprendem a ler uma partitura: eles
a ‘percebem’. E nenhum atleta nato jamais teve que aprender como pegar uma
bola. Algumas coisas de fato têm que ser ensinadas — e não apenas valores,
percepções e significados. Um professor é necessário para identificar os pontos
fortes do aluno e para direcionar um talento à sua realização. Nem mesmo um
Mozart teria se tornado o grande gênio que foi sem seu pai que era um verdadeiro
mestre. . . . A nova tecnologia . . . é uma tecnologia de aprendizagem, e não
de ensino. . . . Não resta dúvida que grandes mudanças irão ocorrer nas escolas
e na educação — a sociedade instruída irá exigi-las e as novas teorias e
tecnologias de aprendizagem acabarão por efetivá-las” [17].
V.
Competências e Habilidades
Mais especificamente, quais seriam essas competências
e habilidades? A título ilustrativo, e sem pretensão de ser exaustivo, listo
abaixo um conjunto de habilidades, agrupadas em diversas competências básicas,
que me parecem fornecer a base para uma educação orientada para a competência
de crianças e jovens até por volta dos dezoito anos.
A. Competência na Absorção da Informação
a) Habilidade de bem utilizar os sentidos e de aprimorar a acuidade dos
sentidos (aprender a perceber)
b) Habilidade de entender e corretamente interpretar a linguagem
corporal
c) Habilidade de entender a linguagem verbal falada e escrita e
desenvolvimento da capacidade de ler com compreensão e rapidez
B. Competência na Transmissão da
Informação e na Comunicação
a) Habilidade de se expressar bem em língua materna falada e escrita
b) Habilidade de se expressar bem em língua estrangeira (em especial, no
caso do Brasil, Inglês e Espanhol)
c) Habilidade de se expressar bem através da linguagem não-verbal
(especialmente a corporal)
C. Competência no Acesso à Informação
a) Habilidade de buscar e pesquisar a informação em qualquer dos meios
em que esteja armazenada
b) Habilidade de memorizar a informação essencial e de uso constante
c) Habilidade de organizar organizar e arquivar a informação e de
localizar e recuperar com facilidade e rapidez a informação não memorizada
D. Competência na Análise da Informação
a) Habilidade de analisar criticamente e avaliar a informação textual,
numérica, estatística, gráfica, sonora, e visual
b) Habilidade de raciocinar logicamente
c) Habilidade de perceber padrões, conformações, tendências, analogias,
sutilezas, ironias, sarcasmos, humor,etc.
E. Competência Epistemológica, Ética e
Estética
a) Habilidade de diferenciar questões que envolvem o verdadeiro, o bom
(certo) e o belo e de discernir critérios que adequadamente o verdadeiro do
falso, o bom (certo) do mau (errado) e o belo do feio
b) Habilidade de aplicar esses critérios no dia-a-dia e de agir e viver
coerentemente com os seus princípios
c) Habilidade de, a despeito da ausência de incentivos, apreciar o
verdadeiro, o bom (certo) e o belo
F. Competência na Compreensão
a) Habilidade de compreender o funcionamento do mundo físico
b) Habilidade de compreender o comportamento de seres vivos
c) Habilidade de compreender o ser humano, no plano individual e social
d) Habilidade de compreender as manifestações culturais do ser humano
e) Habilidade de compreender o poder transformador dos sonhos e das
utopias
G Competência no Relacionamento
Interpessoal
a) Habilidade de se relacionar bem com as pessoas
b) Habilidade de negociar, de administrar pressões e de gerenciar
conflitos
c) Habilidade de controlar as emoções, gerenciar tensões e reduzir
stress
H. Competência no Plano Pessoal
a) Habilidade de decidir com base em princípios e de agir, no momento
oportuno, de acordo com as decisões tomadas
b) Habilidade de solucionar problemas
c) Habilidade de gerenciar mudanças
I. Competência no Gerenciamento de Longo
Prazo da Vida
a) Habilidade de planejar projetos de vida e as estratégias para
alcançá-los
b) Habilidade de administrar o tempo (distinguir o importante do
urgente, e ambos do não-importante e/ou não-urgente, e priorizar as atividades)
c) Habilidade de reconhecer os erros e de aprender com eles
d) Habilidade de, quando convencido da justeza do curso de ação traçado,
persistir nele, mesmo na face de adversidades
O que se propõe aqui é, de certo modo, um MBA em miniatura – ou, talvez, um MLA
– Master of Life Administration. Executivos hoje pagam mais de 50 mil dólares
para obter essas competências – porque a escola se dedica a obrigar os alunos a
memorizar as listas dos faraós do Egito, os afluentes da margem esquerda do
Amazonas, a tabela dos elementos.
Como é que se desenvolvem essas competências e essas
habilidades? É aqui que entra a noção de currículo – não um currículo centrado
em disciplinas, como os que nos são familiares, mas, sim, um currículo centrado
em problemas / projetos cuja resolução / execução pode ser buscada através de
projetos de interesse dos alunos.
É bastante evidente que as competências e habilidades
listadas atrás podem ser desenvolvidas em projetos os mais variados que buscam
soluções para problemas os mais diversos. Mas esses projetos não podem se
restringir a atividades que se desenvolvem dentro das disciplinas tradicionais.
Para que tenham impacto, é preciso que sejam interdisciplinares e que se
relacionem com questões que sejam de interesse dos alunos.
Para que o desenvolvimento das competências e
habilidades se dê de forma prazerosa e não impositiva, é indispensável que os
projetos e, dentro deles, as atividades selecionados para promovê-las, estejam
estreitamente relacionados com os interesses dos alunos.
Os chamados “Temas Transversais” que o Ministério da
Educação vem procurando promover através dos Parâmetros Curriculares Nacionais
são, na realidade, conjuntos de problemas, em geral de interesse de todos
(sexo, droga, violência, saúde, consumo, etc.), que poderão eventualmente
servir como novo eixo de ordenamento do currículo, que substituirá,
tardiamente, o eixo disciplinar.
Nesse contexto, o professor deve agir, menos como
especialista em conteúdo, e mais como pessoa de apoio que, não importa qual
seja os interesses dos alunos, saiba relacionar esses interesses com o
desenvolvimento de competências e habilidades como as descritas e saiba, sempre
que necessário, fazer referência a conteúdos informacionais que possam ajudar
no desenvolvimento do projeto.
Os conteúdos informacionais, assim situados, deixam
de ser o objeto central da ação educacional e passam a ser instrumentos que
podem ajudar no processo de solução de problemas que, por seu turno, levará ao
desenvolvimento de competências e habilidades que, este sim, será o objeto
final da ação educacional.
VI. Algumas
Considerações sobre o Papel da Tecnologia
Faz vinte anos que venho refletindo sobre o uso de
tecnologia (em especial computadores) na educação (em especial em escolas). Ao
longo desse tempo tem me ficado bastante claro que o principal obstáculo ao uso
generalizado de computadores em escolas não é o custo do equipamento, não é a
inexistência de software adequado, e não é a dificuldade técnica de capacitar o
professor no manejo dessa ferramenta.
O principal obstáculo é que os educadores não
conseguem entrar em um acordo sobre o que fazer com o computador na escola, e a
principal razão pela qual não chegam a esse acordo nada tem que ver com o
computador, mas tem tudo que ver com o fato de que os educadores, em geral, têm
visões muito diferentes de qual seja o papel educacional da escola – e,
conseqüentemente, de qual seja o papel do computador dentro dela.
Em 1983 (dezessete anos atrás) publiquei um artigo na
revista Em Aberto do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP), do Ministério da Educacão, com o título “Computadores: Máquinas de
Ensinar ou Ferramentas para Aprender?”. Nesse artigo observo que há
controvérsias entre os educadores sobre a melhor maneira de usar o computador
na escola e que essas controvérsias decorrem de diferentes visões do papel da
educação escolar:
“Fundamentalmente, a controvérsia maior ocorre entre os que defendem a
utilização do computador basicamente como um instrumento de ensino e os que
defendem a utilização do computador basicamente como uma ferramenta de
aprendizagem (na verdade, de auto-aprendizagem). Pode parecer que a questão não
é tão fundamental assim é que tudo não passaria de uma questão de ênfase. Contudo,
há aspectos importantes por detrás destas colocações. Vou resumir os principais
aspectos destas duas colocações, sem pretender imparcialidade – minha
preferência é claramente pela segunda – mas tentando ser justo e, na medida do
possível, objetivo em minhas ponderações.”
De um lado estão os que não vêem, para a escola,
outro papel além do de transmitir aos alunos, através do ensino, um corpo de
conhecimentos sistematizado, organizado em disciplinas e classificado em
séries, cuja assimilação é o que se chama de aprendizagem.
O computador, para estes, deve ser utilizado de uma
maneira que substitui, reforça ou torna mais eficientes os métodos pedagógicos
tradicionais, sem que, em decorrência da utilização do computador, seja
profundamente alterado o processo de aprendizagem. Isto faz com que o modelo
aqui analisado, embora introduza o computador na escola, o faça sem maiores
inovações, sem que haja uma transformação profunda nos objetivos educacionais e
nos métodos de ensino tradicionalmente adotados. Conseqüentemente, a introdução
do computador na escola se faz de forma menos traumática.
Do outro lado, os que não comungam da mesma abordagem
acham que essa visão do uso do computador o reduz a uma mera maquininha de
ensinar ou de ajudar o ensino – e que apenas isso dificilmente justificaria
todo o alarde que se faz acerca dele. A divergência principal não está centrada
na tecnologia, porém, mas, sim em uma visão diferente do papel da escola na
educação. Para eles, o papel principal da escola é o de criar um ambiente (uma
“ecologia cognitiva”) que favoreça a aprendizagem do aluno, aprendizagem esta
que ocorre quando o aluno, em interação com o ambiente, desenvolve estruturas
cognitivas que se traduzem em competências e habilidades que lhe permitem,
acima de tudo, continuar a aprender e a aprender sempre.
O computador, para estes, deve ser utilizado, não
como uma máquina de ensinar, mas como uma ferramenta de aprender, isto é, como
uma tecnologia que pode facilitar, por parte dos alunos, o desenvolvimento das
competências e habilidades necessárias para que aprendam a aprender e que
aprendam sempre, pois inserindo-se nos ambientes de aprendizagem em que eles se
situam o computador permite que se ampliem os seus horizontes cognitivos e
aumentem as suas possibilidades de interação com o meio – em especial no que
diz respeito a contatos com pessoas de interesses afins e a acesso a
informações relevantes aos seus interesses. O computador, para eles, é uma
tecnologia que expande e aumenta o potencial da mente humana. (Vannevar Bush,
Douglas Engelbart, Ted Douglas, Tim Berners-Lee).
Como ficou claro do que foi dito atrás, há uma
diferença fundamental entre essas duas visões do papel da escola na educação e,
conseqüentemente, do papel da tecnologia na escola.
Na primeira abordagem a ênfase está na absorção pelos
alunos dos conteúdos informacionais previstos nos planos curriculares.
Perguntas, quando ocorrem, são feitas apenas com o intuito de que se esclareça
alguma coisa que não ficou muito clara na apresentação (aula ou leitura).
Interação real dos alunos com o professor, nem, muito menos, dos alunos, entre
si, não é considerada fundamental. O ambiente de aprendizagem (esta entendida
como absorção de informações pré-definidas) é estruturado sem a participação
dos alunos e chega a este já definido e fechado.
Os proponentes da segunda abordagem pretendem “virar
as coisas de ponta cabeça”. De forma mais ou menos ingênua, porém, muitos dos
proponentes da segunda abordagem esperam que o computador, uma vez introduzido
na escola, vá ajudá-los a subverter a ordem estabelecida e a promover as
mudanças que desejam que aconteçam. Isso raramente acontece. Na escola, como em
qualquer outro lugar, tecnologia, por si só, não promove mudanças. Estas, se
vierem a ocorrer, são sempre promovidas por pessoas – que, entretanto, podem,
ser valer da tecnologia para alcançar alguns de seus objetivos.
NOTAS
[1] Uma formulação levemente diferente seria:
Educação é o processo através do qual as pessoas se tornam capazes de viver
vidas autônomas, competentes e responsáveis tanto no plano individual e como no
social. [RETORNAR]
[2] O verbo “educar” pertence, portanto, a uma
categoria distinta daquela em que se inclui o verbo “ensinar”. No caso de
“ensinar”, o sujeito da ação é uma pessoa mas o objeto da ação é um determinado
conteúdo: alguém ensina alguma coisa – não alguma pessoa, embora sempre ensine
essa alguma coisa para alguém . Mesmo no caso em que a sintaxe parece admitir
que apareça um objeto direto “pessoa”, como no caso em que dizemos que “alguém
ensina alguém a fazer alguma coisa” o sentido lógico indica que esse objeto
direto lingüístico é, na realidade, um objeto indireto lógico, o sentido real
da frase sendo “alguém ensina fazer alguma coisa a alguém”. [RETORNAR]
[3] Em outras palavras, não faz sentido dizer que
alguém foi educado, ou se educou, se ele nada aprendeu. O processo de educação
sempre resulta, necessariamente, em algum aprendizado – ou não houve educação.
Nesse aspecto o conceito de educação é mais uma vez claramente distinto do
conceito de ensino, segundo o qual é perfeitamente possível dizer que uma
pessoa tenha ensinado algo a outra, mas que esta não tenha aprendido nada.
Vide, adiante, na Nota 7, a distinção, na língua francesa, entre “enseigner” e
“apprendre” (neste caso, no sentido dito objetivo). [RETORNAR]
[4] Aprender a torturar os outros é, sem dúvida, um
aprendizado, mas, porque torturar não é algo valorizado em uma sociedade
liberal-democrática, esse aprendizado não é visto como parte da educação de uma
pessoa nesse tipo de sociedade. [RETORNAR]
[5] O conceito de educação requer, portanto, uma
referência à natureza dos processos cognitivos apropriados envolvidos no aprendizado,
que são os de compreensão e entendimento. [RETORNAR]
[6] Ao falarmos em auto-educação e auto-aprendizagem
não queremos, naturalmente, sugerir que a educação e a aprendizagem se dêem,
nesses casos, num vácuo. Mesmo aquilo que aprendemos sozinhos envolve algum
nível (muitas vezes indispensável) de interação com outros seres humanos, de
observação de seu comportamento, e de imitação (consciente ou inconsciente).
Não envolve, porém, o esforço formal e deliberado, da parte de terceiros, de
nos ensinar. Alguém – creio que John -- uma vez disse que se alguém tentasse
nos ensinar a falar a língua materna, provavelmente nunca a aprenderíamos.
Aprendemos a falar a língua materna em grande parte sozinhos, através de
interação com outras pessoas, de observação e de imitação. Isso não exclui o
fato, porém, de que aqueles que já dominam competentemente a fala da língua
materna (em geral adultos) freqüentemente procurem ensinar determinadas
palavras aos que ainda não as conhecem (em geral crianças). [RETORNAR]
[7] Em português e na maioria das outras principais
línguas do ocidente, exceto o francês, o verbo “aprender” não preserva esse
sentido duplo, restringindo-se sempre a uma realização pessoal: é sempre a
própria pessoa que aprende, mesmo quando o aprendizado é resultante do esforço
de terceiros. Em francês, porém, o verbo “apprendre” tem duplo sentido: pode
significar o mesmo que aprender, em português, mas pode também significar
“levar a aprender” – ou algo muito próximo do verbo “ensinar”, sem, contudo,
lhe ser idêntico. Neste caso, quem leva alguém a aprender é uma pessoa e quem
aprende é outra. Le Petit Robert chama esses dois sentidos de, respectivamente,
subjetivo e objetivo. No sentido subjetivo, “apprendre” quer dizer,
basicamente, “acquérir la connaissance de”; no sentido objetivo, quer dizer,
basicamente, “faire connaître”. Tanto é assim que o verbo, em seu sentido
objetivo, pode ser usado em expressões como: “Je viens vous apprendre que le
ministre est arrivé” [Venho informá-lo (fazê-lo saber) de que o ministro
chegou], “Un livre n’est excusable qu’autant qu’il apprend quelque chose” [Não
se justifica a existência de um livro a menos que ele nos leve a aprender
(ensine) alguma coisa”, “Le maître apprend aux élèves les verbes irréguliers
anglais” [O mestre faz saber (ensina) aos alunos os verbos irregulares
ingleses], “Il lui apprend à jouer au bridge” [Ele o leva a aprender (ensina) a
jogar bridge], “Cela lui apprendra à vivre” [Isto o fará aprender (ensinará) a
viver’], “Quand on veut plaire dans le monde, il faut se résoudre à se laisser
apprendre beaucoup des choses que l’on sait par des gens qui les ignorent”
[Quem quer agradar nesse mundo precisa se deixar ensinar muitas coisas que já
sabe por quem as ignora]. É interessante que o francês use o verbo “apprendre”,
nesses contextos, em vez do verbo “enseigner”. O útil Dictionnaire des Difficultés de
la Langue Française, da Larousse, explica assim a diferença entre
“enseigner” e o sentido objetivo de “apprendre” (ao discorrer sobre o primeiro
verbete): “Enseigner, cést donner un eiseignement, sans plus. ... Apprendre dit
plus: c’est faire acquérir une connaisance à quelqu’un en la lui enseignant,
c’est faire savoir. ‘J’ai enseigné l’ortographe à Paul’ ne signifie pas que
Paul saît l’ortographe (il peut n’avoir pas compris mes leçons ou les avoir
oubliées); mais il la sait sûrement se je la lui ai apprise” [Ensinar é
ministrar um ensino, nada mais ... Aprender tem sentido mais amplo: significa
fazer com que alguém adquira um certo conhecimento através do ensino, significa
fazer saber. ‘Eu ensinei [enseigner] ortografia ao Paul’ não quer dizer que
Paul saiba ortografia (ele pode não ter compreendido minhas aulas ou ter
esquecido o que lhe foi ensinado); mas ele certamente sabe ortografia se eu a
fiz saber [apprendre] a ele”. [RETORNAR]
[8] É desnecessário frisar que o termo “escola”, no
caso, deve ser interpretado no seu sentido estrito, como se referindo a
instituições que ministram a educação básica (educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio) e a educação superior. Outras instituições
destinadas à educação, ainda que usem a designação “escola” (“Escola de
Línguas”, “Escola de Informática”, etc.) estão fora do escopo da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional. (A LDB não é cuidadosa em seu uso dos termos
“educação” e “ensino”.[RETORNAR]
[9] O engodo em questão pode estar vitimando também
os usuários da escola particular, constatação que justifica deixar de fora aqui
a questão das intenções. Mas focarei minha atenção apenas na escola pública.[RETORNAR]
[10] Informação retirada do programa do Congresso.[RETORNAR]
[11] Vide as duas crônicas de Mário Prata, “As
Meninas-Moça” e “O que é isso, Ministro Paulo Renato?”, em O Estado de S. Paulo, 7
de abril de 1999 e 16 de junho de 1999, respectivamente. [RETORNAR]
[12] Peter Drucker, As Novas Realidades,
tradução do Inglês de Carlos Afonso Malferrari (Livraria Pioneira Editora, São
Paulo, SP, 1989), pp. 203-204. [RETORNAR]
[13] Citado apud
Karl Popper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos [RETORNAR]
[14] Karl Popper, A Sociedade Aberta e seus
Inimigos [RETORNAR]
[15] Marshall McLuhan, Understanding Media: The
Extensions of Man (McGraw-Hill Book Co., New York, NY, 1964), p.49. [RETORNAR]
[16] Alvin Tofler, Future Shock (Random House /
edição encadernada, New York, 1970, e Bantam Books / edição em brochura, New
York, 1971), p. 400 da edição em brochura; cf. pp.186, 272, 398-427, e 447. [RETORNAR]
[17] pp.212, 215. [RETORNAR]
* Eduardo O C Chaves (eduardo@chaves.com.br),
Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade Estadual de
Campinas, onde se encontra desde 1974, é Consultor do Programa "Sua Escola
a 2000 por Hora" desde o seu início. Maiores informações sobre ele podem
ser encontradas em seus sites: chaves.com.br, edutec.net, paideia.com.br, aynrand.com.br e liberty.com.br.